terça-feira, 18 de junho de 2013

Zé Cristo


O clã dos “Cristos” metia respeito: o Manel, na casa dos vinte e oito anos, o João, com menos dois, o Chico, recém vindo da tropa, cujo tempo passara, na maior parte, no forte da Graça, em Elvas, e o ganapo – o Zé – a atingir os dezoito anos, dentro de dias. 

Todos iam acima do metro e oitenta.

Não havia festa, ou descante, onde os quatro irmãos não aparecessem, com ar provocador e, por vezes, munidos dos respectivos paus – que punham sobre as omoplatas, formando uma cruz, com os braços –. 

Daí derivava, ao que se pensa, a alcunha que ostentavam, vinda já dos seus antepassados e que não ligava ao apelido da família: Alexandre.

Os paus constituíam um verdadeiro adereço; eram vulgaríssimos, na época. 

Tratava-se de uma vergôntea de marmeleiro, bem seleccionada e seca longe do sol, com uns dois côvados, ou uma vara – o côvado media 66 cm e a vara 11 decímetros –. 

Conhecemos apenas duas utilidades a estes paus, que qualquer homem que se prezasse exibia nas feiras e mercados: para conduzir o gado, ou para se apoiar. 

Uma outra utilidade – como padrão – era pouco aplicada.

As zaragatas eram, de facto, o terreno mais vulgar para o uso do pau. 

Nas aglomerações e festanças, dos meios rurais, disputava-se o jogo do pau, mas o verdadeiro uso do mesmo era no costado de um qualquer adversário, quando o ensejo tal proporcionasse. 

Todavia este e outros costumes foram-se extinguindo, devido à proliferação da GNR e firmeza de Regedores e Cabos de Ordens, nome por que na região eram designados os Juízes de Paz.

Os magotes de rapazes, que andavam de aldeia em aldeia, nos bailes, descantes e festas, deixavam os paus escondidos de forma que pudessem dispor deles, em poucos minutos, se necessário fosse. 

Nos torneios de jogo de pau disputavam-se prémios e honrarias, de que qualquer homem se prezava.

Ouvia-se contar, aos mais velhos, que no descante do casamento da mãe do Ti’Chico “Manajeiro”, houve uma zaragata, provocada pelos rapazes de Alcaravela, em que foram partidas mais de vinte cabeças e imobilizados mais de uma dúzia de braços. 

Talvez, por isso, “o Manajeiro”, era o maior amigo da ordem e do respeito.

Quase todos os “Cristos” tinham já passado pelas companhas do Ti’Chico; esse ano ia o Zé Cristo, como aprendiz do terceiro ano. 

Passaria à condição de camarada no final da safra e, no ano seguinte, teria já todas as condições de “oficial”, nomeadamente soldada por inteiro e direito a prémios. 

Os aprendizes recebiam, por norma, duas décimas, no primeiro ano; 3 décimas, no segundo e três quartas, no terceiro ano. 

No quarto ano, ou não eram mais chamados para as companhas, ou eram-no, na qualidade de camaradas.

O Zé Cristo era teso, caladão e ligeiramente vesgo – chamavam-lhe “zanaga”-. 

Era o mais alto da companha e em largura de ombros, não havia quem se lhe comparasse. 

Falava pouco, mas, em contrapartida, comia por três ou quatro. 

A trabalhar, uma máquina; os moços, que seguiam no seu encalço, viam-se e desejavam-se para atar os molhos e fazer os rolheiros, atrás dele.

Um dia, um dos moços, o Benvindo, chamou-lhe “caga-molhos”, pois não conseguia manter limpa a área de corte do Zé Cristo. 

Tanto bastou para que o Zé pousasse a foice e, pegando pelo atilho das calças elevasse o garoto bem alto, no cimo do longo braço e parecendo mostrar um troféu a toda a companha. 

Depois, pô-lo, cuidadosamente, no chão, tornou a pegar na foice e começaram a amontoar-se, atrás dele as gavelas ceifadas.

Sorrateiramente, como era seu hábito, o Ti’Chico, fez sinal ao Manel Carolo, em cujo grupo estava o Zé Cristo, e afastou-se da frente de corte, para que o Lopes e o Duque, camaradas que iam ao lado do rapaz, normalizassem a situação.

Uns minutos depois, fitou o Zé Cristo nos olhos – que nessa altura ficaram mais vesgos e baixos – e apenas disse: é a primeira e a última vez que, nesta companha, alguém falta ao respeito; se voltas a fazer alguma das tuas, racho-te!... 

Aqui, somos todos homens, e no que ao respeito diz respeito, até os moços o têm de ter. 

Este caso foi edificante. 

Muito ao modo como o Ti’Chico costumava actuar; batia pouco, mas, quando o fazia, era inexorável e altamente eficaz. 

No resto dos dias da companha não houve mais qualquer altercação. E voltaram todos mais amigos que quando partiram.

No fim da companha, o manajeiro reuniu os chefes de grupo e disse o que pensava fazer com as soldadas. 

Tudo esteve de acordo. 

O Ti’Chico dividiu a totalidade do dinheiro em 40 partes e atribuiu uma a cada um dos trinta oficiais. 

As dez que ficaram – as dos aprendizes –, eram para os cortes, cujas quantias iriam fazer os prémios para compensar o mérito de cada um. 

Nessa altura tomou a palavra e chamou o Zé Cristo, entregando-lhe uma maquia igual à dos camaradas, dizendo que mostrou corpo, disciplina e trabalho como os melhores, e que a justiça deve sempre ser praticada. 

Ninguém se opôs.

Foi a primeira vez, nas memórias das companhas, que um aprendiz foi promovido em pleno campo de trabalho. 

Pela justiça da decisão, o Ti’Chico “Manajeiro”, como sempre ficou conhecido e será lembrado, ainda hoje, é apontado como exemplo de capacidade de liderança e espírito de justiça.

Quanto ao Zé Cristo, aceitou as palavras sábias do “mestre” e não consta que alguma vez mais se tenha envolvido em desavenças.

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